Ferramentas manuais não faiscantes em atmosferas explosivas: Um mito que dificulta

Prezados leitores,

Uma pergunta recorrente sobre áreas classificadas e atmosferas explosivas de gases e vapores é sobre a necessidade de utilizar as chamadas ferramentas metálicas não “centelhantes”, as famosas “ferramentas de bronze”. Em geral, a resposta conservadora ouvida é: “SIM, é obrigatório!”

Por incrível que possa parecer, este assunto, quando relacionado a gases e vapores inflamáveis, foi pouco pesquisado nos últimos 50 anos. Muito se sabe sobre a capacidade de estas ferramentas serem fonte de ignição em ambientes de mineração, principalmente quanto à utilização de ferramentas cortantes, tais como picaretas e brocas. Isto se deve à enorme experiência da Europa sobre o assunto mineração.

Quando a área classificada está relacionada a outras indústrias, que não à mineração, principalmente à indústria de óleo e gás, esta resposta passa a conter uma enorme parcela de “achismo”. Vamos passar para o campo científico para respondermos essa questão de uma vez por todas.

Durante os anos 20, do séc. XX, vários estudos científicos sobre as fontes de ignição por fricção foram conduzidos em muitos países, mas notavelmente no Reino Unido, pela Satefy in Mines Research Board, e na Alemanha. Desde os primeiros resultados, era reconhecido que existiam algumas formas de ignição, tais como: por fricção: impacto contra rochas, como as causadas por uma ferramenta de corte (picareta) durante mineração; rocha contra rocha (como ocorre em quedas de rochas) e metal contra metal (como em um equipamento mecânico).

Desde a década de 30 do século XX, porém, os engenheiros de proteção contra incêndio da indústria de óleo e gás começaram a questionar a justificativa para recomendar a utilização de ferramentas não ferrosas especiais, em lugar de ferramentas comuns de aço carbono – 99% de sua composição química composta por ferro – nas operações de indústrias de óleo e gás. Os engenheiros assinalavam que, embora haja numerosas chances para a produção de faíscas quando do contato violento de objetos de aço contra outros objetos de aço, os casos de incêndio atribuíveis e tais causas podiam ser consideradas desprezíveis.

Como esta dúvida persistia, em 1941, foi apresentado em um evento anual da API, uma descrição de uma série de ensaios realizados durantes os 15 anos anteriores. Os resultados demostravam ser muito improvável que ignição de vapores de petróleo pudesse ser causada por faíscas produzidas pelo contato de aço com aço, com roda abrasiva, ou mesmo com um equipamento mecanizado. A natureza das faíscas foi discutidas e foi demonstrado que qualquer material de maior dureza que o aço, mesmo material considerado como não faiscante, poderia produzir faíscas ao se chocar contra ele.

Desta forma, concluíram que a insistência na utilização de ferramentas especiais denominadas “ferramentas não faiscantes” gera um falso senso de segurança, em detrimento de outras medidas mais importantes de proteção de segurança, em detrimento de outras medidas mais importantes de proteção de segurança contra incêndio. Complementam que as regras abrangentes cobrindo a utilização de tais ferramentas não eram recomendáveis e eram contra “o melhor interesse da indústria do óleo e gás”.

A utilização de ferramentas não faiscantes não era universal em toda a indústria até 1941, mas em seguida à apresentação deste artigo, muitas empresas começaram um programa para eliminar gradativamente a utilização das ferramentas especiais. Entretanto, algumas empresas associadas à API acreditavam que pesquisas adicionais eram necessárias para a obtenção de um parecer definitivo e que deveria ser realizado por uma instituição independente.

Em 1948, já tinham sido obtidas as verbas necessárias e contrataram, em 1950, a realização de uma série de ensaios no Underwrites Laboratories Inc, em Chicago, nos EUA, sob o patrocínio do American Petroleum Comittee on Accident Prevention and Fire Protection. Nos três anos seguintes, pouco foi obtido, além de confirma as conclusões prévias de que mesmo com aparelhos mecânicos operando a altas velocidades e com elevada pressão de contato, é extremamente difícil produzir faiscamento capaz de incendiar os vapores do petróleo. Assim, foi decidido encerrar o contrato com este laboratório.

Em 1955, o U.S. Bureau of Mines emitiu o documento IC 7727 – Frictional Ignition of Gas by Mining Machine. Este documento relata experiência de incêndios, nos EUA  e Europa, discutindo investigações que demonstravam que era possível causar a ignição com certas concentrações e formas de abrasão e impacto. Assim sendo, foram sugeridas vinte e três medidas preventivas de proteção, porém nenhuma delas envolvia quaisquer restrições quanto ao material a ser utilizado pelas ferramentas manuais.

A API realizou uma revisão da pesquisa realizada no laboratório contratado e da experiência da indústria do óleo e gás sobre o tema e propôs a preparação do documento Faiscamento por Ferramentas Manuais, que foi aprovado para publicação. Estes estudos foram consolidados no documento API 2214 – Sparks from Hand Tools (1956).

O instituto de Petróleo do Reino Unido – IP UK – Começou a considerar a importância do faiscamentos de ferramentas manuais como uma fonte de ignição no início dos anos 60, quando enviou essa preocupação para estudos.

Em 1965, foi publicado um documento que incluía uma revisão abrangente das informações publicadas, mas o estudo não continha nenhuma nova evidência experimental. Uma nota introdutória aceitava a conclusão de que ferramentas de materiais não faiscantes não reduzem significativamente o risco de ignição de vapores de petróleo por faíscas, devido à força de fricção, em comparação com as de ferramentas de materiais ferrosos. No entanto, os membros do IP UK foram advertidos para não considerarem essa conclusão como aplicável a gases mais facilmente incendiáveis do que os vapores de petróleo, como desculpa para não assegurar a ausência de concentrações perigosas de gases ou vapores inflamáveis, ou para não tomar outras precauções quando da realização de trabalhos mecânicos.

As décadas de 70 e 80, do século XX, foram marcadas por acidentes industriais de grande magnitude que provocaram mudanças nas normas e procedimentos industriais e uma preocupação crescente com a segurança dos processos industriais.

Em 2001 e 2005, a Comunidade Europeia desenvolveu um projeto denominado “MECHEX” (Mechanical Ignition Hazards in Potentially Explosive Gas and Dust Atmospheres), no laboratório francês INERIS, para obter uma avaliação quanto ao risco de ignição mecânica. Este projeto buscava desenvolver o conhecimento dos riscos associados a estes equipamentos, através de dois projetos de pesquisas: características de faiscamentos e pontos quentes produzidos por espaço por impacto, fricção ou esmerilhamento e medi-los. Desta forma, o processo de degradação da energia mecânica em aquecimento durante a fricção e impacto foi estudado.

O American Petroleum Institute (API) emitiu em julho de 2004, a quarta edição do documento API RP 2214 – “Sparks Ignition Properties of Hand Tools”, onde conclui que nada essencialmente novo foi aprendido desde a publicação do primeiro documento, em 1956. Complementa que publicações recentes, tais como a NFPA’s Fire Protection Handbook, reportam as mesmas conclusões descritas há 40 anos.

Os registros sobre incêndios das companhias que nunca utilizaram, ou que cessaram de utilizar, as ferramentas denominadas não faiscantes confirmam amplamente a posição da API. Um ponto obscuro desta forma é que não inclui gases do tipo hidrogênio. Quando da realização dos estudos API, a utilização do hidrogênio em refinaria estava apenas começãndo.

Na reunião geral dos Comitês técnicos nº 31 da Internacional Electrotechical Commission (IEC), realizada em outubro de 2008, na cidade de São Paulo, Brasil, estiveram presentes 63 delegados, representando 22 Comitês Nacionais de Normalização. Foi decidido criar uma série de normas, denominadas série ISO/IEC 80079, como foco em “equipamentos não elétricos”.

A atual legislação brasileira sobre atmosferas explosivas, regulamentada pela Portaria Inmetro 179 de 2010, atualmente em revisão, trará como uma de suas novidades , a inclusão da obrigatoriedade de certificação de equipamentos elétricos e não elétricos que se destinem à aplicação em áreas classificadas. A ABNT já prepara uma série de normas ABNT NBR ISO/IEC 80079 que será a base normativa para esta nova legislação. A nova portaria está prevista para ser publicada ainda em 2015. Com isto, seria necessário que o Brasil estudasse com mais detalhes esse assunto.

Desta forma, em 2009, foi iniciado um estudo científico sobre a capacidade de as ferramentas manuais, especialmente as marretas de aço carbono, serem capazes de gerar faiscamento em impactos contra placas metálicas, oxidadas ou não. Este estudo foi finalizado em janeiro de 2015. Foi desenvolvido um dispositivo de ensaio e foram utilizadas as condições mais favoráveis para a ignição de uma atmosfera explosiva, que são: impacto contras placas com “quinas”, utilização de mistura de hidrogênio/ar  em concentração de ( 21 2)% v/v, ângulo de ataques entre (55 e 60) graus e energias de impacto superiores às máximas estabelecidas na norma IEC 80079-36.

Foi utilizado para os ensaios, o laboratório de atmosferas explosivas (AP-4) do Cepel, que é acreditado pelo Inmetro e reconhecido internacionalmente. As misturas foram rigorosamente controladas para garantir as concentrações durante os ensaios. Foram realizados mais de 100 impactos de ferramentas de aço carbono , novas e usadas, em materiais, bipartidos ou não, tais como alumínio, aço carbono e aço inoxidável. Os níveis de energia de impacto foram entre 150 J e 185 J, ou seja, 37 vezes o máximo de energia para o impacto simples para atmosferas de hidrogênio (5 J) estabelecido pela norma IEC 80079-36.

Para garantir os resultados, foram realizados também uma filmagem em alta velocidade (10.000 quadros por segundo) e termografia de alta resolução (100Hz). A termografia foi realizada pelo Laboratório de Ensaios Não Destrutivos, Corrosão e Soldagem (LNDC) do departamento de Engenharia Metalúrgica e Materiais da UFRJ.

A conclusão do trabalho demonstra que as ferramentas manuais de aço carbono não são capazes de causar a ignição de gases e vapores da indústria de óleo e gás, utilizadas em serviços de operação e manutenção em áreas classificadas e atmosferas explosivas.

Estes resultados permitem que a API revise a sua norma API RP 2214 e inclua o hidrogênio. Permite também que a IEC analise melhor as informações contidas nas tabelas de 4 a 6 de sua nova norma IEC 80079-36.

Para nós, profissionais, que trabalhamos em prol da segurança do trabalhador, podemos revisar nossos padrões e procedimentos internos de segurança de nossas empresas. Poderemos incluir a possibilidade de utilização de ferramentas ferrosas de aço carbono em nossas operações de operação e manutenção de equipamentos industriais e de processo da indústria de óleo e gás. Esta ação permitirá maior facilidade nas operações, com menor custo e mantendo os mesmo padrões de segurança.

Em tempo: Para esclarecimentos, centelhamento é produzido por energia elétrica e faiscamento é produzido por energia mecânica.

Lumière Electric – Instalações e materiais elétricos

Leandro Erthal