Chamem as Crianças …

1.Introdução

O artigo deste mês é dedicado às crianças. Mas como? Um artigo em uma revista técnica para crianças? Isso mesmo! Vamos apresentar aqui o “Um caminho quase suave” que é o livro dedicado às crianças com dicas de proteção contra os raios.

Na prevenção contra as descargas atmosféricas temos as recomendações técnicas que são acessadas
nas normas técnicas, livros, artigos, lives, aulas e cursos (principalmente para proteção de estruturas e
equipamentos) e também as recomendações, principalmente aos leigos, das ações a serem tomadas em períodos de tempestades. São recomendações relativamente simples que podem salvar vidas.

O objetivo deste livro infantil é orientar as crianças (acho que, neste caso, crianças de todas as idades),
quanto aos perigos dos raios. A ideia surgiu em discussões na criação da APPAR (Associação dos Profissionais de Proteção e Alerta contra os Raios), onde uma das tarefas seria criar uma cartilha para orientar as crianças dos perigos e como se protegerem.

O livro foi inspirado em outras três publicações dedicadas ao público infantil: “Super Dudu” escrito
pelo saudoso professor Duílio Moreira Leite (Foto 1), o “Crianças protegidas sem medo dos raios” do meu amigo Guido de Camargo Potier (Foto 2) e a famosa cartilha “Caminho suave” de Branca Alves de Lima (Foto 3), que os mais velhos vão lembrar (muitos foram alfabetizados utilizando esta fantástica cartilha).

Foto 1: Livro do Duílio M. Leite
Foto 2: Livro do Guido C. Potier
Foto 3: Livro de Branca Alves de Lima

O “Um caminho quase suave” mescla as características destes dois primeiros livros infantis, onde um
tem uma linguagem mais técnica e o outro uma característica mais de estória infantil. Do terceiro, foi inspirado o título, a capa e, lógico, a ideia de ensinar por imagens, que a Branca Alves de Lima foi uma das precursoras nesse assunto.

O desenvolvimento do projeto

Concebida a ideia, como colocar no papel, em uma linguagem simples e compacta, os conceitos de
tensão de toque, de passo, descarga lateral, líderes ascendentes, sistemas de alerta de tempestades,
SPDA, DPS, etc?

A minuta dos textos, mesclados com rascunhos dos desenhos foram nascendo ao mesmo tempo da
procura de ilustradores, patrocinadores e editores para o projeto.

Com a minuta dos textos e rascunhos das ilustrações prontas, uma conversa com possíveis ilustradores mostrou a importância de um “briefing” bem detalhado composto por explicação das cenas, dos personagens, fotos, desenhos, detalhes (desde tipo e cor dos cabelos dos personagens, roupas, etc, assim como, expressões, sentimentos e ações…).

A família também abraçou o projeto, dando ideias e principalmente, os sobrinhos, Amanda e Roninho,
servindo de “modelos” para fotos que fariam parte do briefing.


Briefing preparado, a procura do ilustrador. Algumas boas opções, mas a escolha da Ju Paranhos para
ilustrar o livro foi a grande sacada neste projeto. Desenhista brilhante, prestativa, árdua pesquisadora,
criativa, enfim, um achado fundamental. A editoração ficou a cargo da Fernanda Lino Paranhos, sua irmã.

Personagens criados, teste de cores, os desenhos foram nascendo…

O auxílio de uma editora é fundamental. Um outro achado! Thaisa Burani, fantástica! E ainda por cima,
filha do grande amigo, professor, chefe, orientador de mestrado, de parte do doutorado e ex-diretor do Instituto em que trabalho por 42 anos: Geraldo Francisco Burani. A Editora escolhida foi a Cai-cai Edições.


A procura de patrocínio foi muito mais fácil que esperava: após algumas poucas conversas com empresas da área de proteção, muito interesse, porém uma conversa sobre o projeto com o chefe da divisão científica em que trabalho, o Prof. Roberto Zilles e dele com o diretor do IEE, Prof. Tercio Ambrizzi, o projeto foi amplamente encampado pelo Instituto, com indicação para fazer parte das comemorações dos 90 anos da USP.

Revisão dos textos, editoração, ISBN, código de barras, estes dois últimos itens, com a ajuda das Marias
(de Fátima e da Penha), grandes amigas da Biblioteca do IEE USP.
A capa do livro (Foto 04) foi concebida baseada na cartilha “Caminho Suave” onde a escola foi adaptada para uma sede de um camping protegida por PDA.

Foto 04: Capa do livro.

Um “spoiler” da caminhada

A aventura começa na chácara chamada de “… Do lado esquerdo do peito …”, uma homenagem ao
compositor Fernando Brandt que nasceu em Caldas (MG), local da aventura.
As crianças Amanda (Dindinha), Roninho, Harumi e Iara iniciam a caminhada indo atrás dos cãezinhos
Levi e Hininha e do caçulinha da turma, o Nonô, que haviam fugido da chácara.

Os jovens Toya e Saru, que estavam em um outro local, também saem a procura das crianças.

Utilizando a câmera de altíssima velocidade, Sarão tenta procurar as crianças através da teleobjetiva,
mas percebe o início da trovoada observando líderes ascendentes (Foto 5). Nesta cena, os conceitos de
sensores de campo elétrico e de líderes ascendentes são apresentados.

No caso, os sensores de campo elétrico (field mills) monitoram o campo elétrico na terra para disparar
(trigar) a câmera de alta velocidade (Phantom) no instante em que iniciam as descargas atmosféricas na
nuvem.

Foto 05: Câmera Phantom, sensores de campo e líderes ascendentes.

As Câmeras Phantom são de altíssima velocidade, podendo chegar a 600.000 fotos por segundo
(em baixa resolução), mas bastante utilizada em 10.000 a 20.000 fotos por segundo em filmagens de
descargas atmosféricas. Com esta câmera é possível analisar o desenvolvimento da descarga atmosférica desde a nuvem, seus pulsos, líderes descendentes e os líderes ascendentes (conectante e não conectados).

Os líderes descendentes são aqueles formados nas nuvens e que descem em pulsos em direção à terra.
Os ascendentes surgem em diversos pontos na terra em virtude do campo elétrico gerado pelos pulsos dos líderes descendentes. Os líderes ascendentes surgem em diversos pontos, em geral, pontos altos, tipo mastros de SPDA, árvores, quinas de estruturas, torres e, até mesmo, da cabeça de pessoas. O líder ascendente que acaba se conectando com o descendente é chamado de líder ascendente conectante e os que não se conectam são chamados de não conectados. Esses possuem carga elétrica que se acumulam e quando ocorre a conexão, a carga dos demais (que não conectaram) volta para a terra sendo que, se for aquele que se formou na cabeça de uma pessoa, pode causar ferimentos e até matar o indivíduo.

Na caminhada para encontrar as crianças, Toya e Saru presenciam um raio atingindo uma cerca e duas
vacas sendo atingidas por tensão de toque (Foto 06).

Foto 06: Tensão de toque nas vaquinhas.

As tensões de toque ocorrem entre partes do corpo de uma pessoa ou animal que estão tocando um
elemento energizado pela descarga atmosférica e seus pés ou patas que estão em um outro potencial.
As tensões de toque são responsáveis por muitos ferimentos e mortes. Muitas pessoas morrem por
tensão de toque quando estão falando no telefone com fio ou em celular conectado na tomada e ocorre um surto que percorre a alimentação elétrica. Ferimentos e mortes também ocorrem em pessoas tocando eletrodomésticos (geladeiras, TV, etc) e a alimentação elétrica ou a própria edificação é atingida por raios (no caso, o surto pode vir pelo BEP – Barramento de Equipotencialização Principal). Telefones conectados na tomada podem explodir quando atingidos pelos surtos (Foto 07).

Foto 07: Celular conectado a tomada e surto.
Foto 08: Tensão de passo*

As tensões de toque ocorrem também quando torres, descidas de SPDA, cercas, arvores, tubulações
metálicas, grades são tocadas no instante em que são atingidas por uma descarga atmosférica.
As tensões de passo e as descargas laterais estão representadas na cena referente a Foto 08, onde o raio atinge diretamente a árvore. Em geral, quando pessoas se abrigam embaixo de árvores e esta é atingida por um raio, descargas laterais ocorrem entre o tronco da árvore e o corpo das pessoas. Dependendo da distância das pessoas e de animais em relação ao ponto de impacto, o mecanismo que mais fere é a tensão de passo.

A tensão de passo ocorre quando a corrente da descarga atmosférica flui pelo solo “gerando” linhas
de potenciais diferentes. Se uma pessoa estiver com os pés (ou um animal, com as patas) em potenciais
diferentes, podem ocorrer ferimentos e morte. As tensões de passo são responsáveis por muitas mortes de pessoas e animais próximos ao ponto de impacto do raio. Este percentual (na literatura) vem mudando uma vez que estudos mostraram que as tensões de passo são perigosas até uma certa distância (até uns 20 metros do ponto de impacto) e que mortes inicialmente indicadas por serem por tensão de passo, foram ocasionadas por líder ascendente não conectado.

Foto 09: Tensão de passo devido a correntes de curto circuito*.
Foto 10: Evitando tensão de passo

A Foto 09 mostra uma outra forma de tensão de passo: a que ocorre devido a uma corrente de curto-
-circuito em frequência industrial fluindo pela terra. A diferença entre esta tensão de passo está no tempo e valores da tensão. Neste caso, o tempo em que as pessoas estão expostas, depende do tempo de atuação da proteção do sistema em questão, que em geral é da ordem de um a dois segundos e no caso dos raios, este tempo é bem menor, na casa de micro ou mili segundos.

No caso da Foto 10, a posição em cócoras mostra uma forma de diminuir os efeitos da tensão de passo. A cena questiona um eventual tecido condutivo que poderia fazer a equipotencialização e assim evitar tensões perigosas no corpo.

Foto 11: Recomendações relativas ao aumento de altura e pontas

A cena da Foto 11 alerta sobre o aumento de altura e sobre as pontas. Os líderes ascendentes surgem
principalmente em pontas (pontas dos mastros de SPDA, árvores, torres) de pontos altos na terra. Cita as pontas Franklin, uma homenagem ao cientista Benjamin Franklin que realizou os primeiros estudos de para raios.

Foto 12: Em caso de tempestades com raios, procure uma edificação protegida

A cena da Foto 12 traz a principal mensagem do livro que é: estando em uma área aberta, com a tempestade com raios se aproximando, procure uma edificação protegida.

Foto 13: Mitos ainda existentes e verdades*.
Foto 14: Estimativa da distância do raio*

A cena referente a Foto 13 mostra alguns mitos que ainda existem relativos à proteção contra os raios.
Cobrir espelhos e guardar facas e tesouras são mitos, porém tirar da tomada os plugues de eletrodomésticos é uma boa ideia, mas antes que as descargas estiverem ocorrendo bem perto.

A cena da Foto 14 é ilustrativa de como estimar a distância dos raios. Como a velocidade da luz é de 3
x 108 m/s, vemos o relâmpago praticamente no mesmo instante em que ele ocorre. A velocidade do som é de 340 m/s. Se contarmos os segundos entre “ver” o relâmpago e “escutar” o trovão, podemos estimar a distância do raio multiplicando os segundos por 340 (em metros) ou dividindo os segundos por 3 e teremos a distância aproximada em km.

Foto 15: Sistema de alerta de tempestades.*
Foto 16: Final feliz

A cena da Foto 15 mostra um sistema de alerta de tempestades (conforme ABNT NBR 16785) avisando
que a tempestade já passou e que as pessoas já podem sair. O uso de um sistema de alertas de tempestades local deve ser incentivado pois este é essencial para proteção de pessoas em áreas abertas.
Na cena da Foto 16 mostra o principal objetivo do livro: Todos salvos e em segurança contra os perigos
dos raios.

NOTA: Algumas ilustrações ainda estavam com baixa resolução na época de confecção deste artigo.

Conclusões
Este artigo apresenta o enredo e o making of do livro: “Um caminho quase suave”. Uma cartilha que
tem por objetivo alertar sobre os perigos das descargas atmosféricas e mostrar algumas recomendações
para evitar ferimentos devido aos raios.
A ideia é distribuir esta cartilha em escolas (principalmente as de nível fundamental), prefeituras, Corpo
de Bombeiros, enfim, ao máximo de pessoas possíveis onde as recomendações de segurança ajudem a
diminuir os ferimentos e mortes.
Uma vida salva já vale qualquer esforço e investimentos.

Por HÉLIO E. SUETA INSTITUTO DE ENERGIA E AMBIENTE – USP em revista Potencia ed 226

HÉLIO E. SUETA INSTITUTO
DE ENERGIA E AMBIENTE – USP