O custo oculto das redes de distribuição baratas

Em fevereiro de 2024, um cabo de alta tensão da Copel caiu sobre um parque aquático matando três pessoas e ferindo nove [1]. Isto engrossa as estatísticas de acidentes com redes aéreas de distribuição
de energia elétrica [2], o que enseja a defesa das redes subterrâneas. Mas estas têm seu histórico de fogo e explosões, com queimaduras e mortes [3]. Este artigo discute a arquitetura das redes no Brasil e sugere melhorias.

Aprimeira cidade brasileira a ter uma rede de distribuição de energia elétrica foi Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro. A inauguração ocorreu em 7 de dezembro de 1883, pela Companhia de Eletricidade Fluminense, fundada pelo empresário Mário de Gusmão.

Como o País era essencialmente agrícola, a tecnologia empregada foi importada. Inicialmente, foi adotada a distribuição por redes aéreas, uma vez que os consumidores eram poucos e oc custos de execução eram menores.

Anos depois, com o crescimento da população nas grandes cidades, a instalação em postes ficou inviável para suportar os transformadores maiores, então estes passaram a ser alocados em câmaras abaixo do nível das ruas, formando as redes de distribuição subterrâneas, também segundo tecnologia importada.

Características das redes de MT aéreas

Construção

As redes urbanas aéreas de distribuição de energia elétrica em MT (13,2 kV) são majoritariamente construídas com cabos nus. Em alguns locais é adotada a rede compacta mostrada na figura 1, utilizando cabos protegidos por uma capa polimérica que, no entanto, não se destina a oferecer proteção às pessoas. A capa visa apenas a proteger os condutores de contatos eventuais com galhos de árvores, uma das causas mais comuns de interrupções no fornecimento [4].

A medida de proteção aplicada às redes aéreas de MT é a “parcial por colocação fora de alcance” [5], um conceito precário pois se baseia unicamente no distanciamento entre as partes vivas e as pessoas que se encontram ao nível do solo. Não considera, por exemplo, movimentações de andaimes ou elevações de
cargas nas proximidades, que causam elevado número de acidentes [2]. Confiantes em tal medida de proteção, as concessionárias constroem suas linhas de MT com cabos nus a cerca de 10 m de solo.

Fig. 1-Rede aéra compacta

Há normas ABNT sobre construção de redes aéreas de distribuição, porém elas apenas padronizam os detalhes de montagem, não abordando requisitos de segurança às pessoas nas proximidades [6].

Ocorrências

Eletrocussão – Dentre os vários eventos publicados na mídia, destacamos o ocorrido em São Paulo em 26/9/2013, quando dois homens morreram ao empurrar um andaime e este ter encostado na rede de MT [7]. A rua onde aconteceu o acidente é bastante estreita e a rede de MT fica muito próxima das casas.

Este tipo de acidente tem sido noticiado com certa regularidade, em várias cidades, na maioria das vezes causando vítimas fatais.

Rompimento de condutores – A queda de cabos sobre veículos tem ocorrido com alguma frequência em vários estados do Brasil, sendo um acidente dos mais perigosos, como mostrado na figura 2, sobre uma ocorrência em São Gonçalo, RJ [8].

As recomendações ora divulgadas nas redes sociais, em vídeos estrangeiros e replicados por concessionárias brasileiras, orientam passageiros dos veículos nesta situação a: ficarem no carro (mas sem tocar em partes metálicas); e, caso se inicie um incêndio, pular do veículo, com os dois pés juntos, e afastar-se do carro arrastando os pés, sem levantá-los do chão, no mínimo, até 15 m de distância [9].

Tais “recomendações”, apesar de parecerem de fácil execução, são falhas, pois, além de não avaliarem que os passageiros estarão sob impacto emocional, não consideram outros riscos intrínsecos, como: parte do cabo energizado pode estar em contato com o chão, produzindo tensões de passo perigosas ao redor do carro; o piso pode ser irregular e/ou estar molhado, com risco de tropeços e quedas; os passageiros podem ter dificuldades motoras, etc.

A primeira pergunta que surge nessas ocorrências é sobre a razão de o cabo permanecer energizado, uma vez que o esperado é que houvesse uma proteção que atuasse e desenergizasse o trecho. Considerando que a proteção típica empregada nas redes aéreas de MT [4] é composta pelo disjuntor do ramal (na subestação), os religadores automaticos e os elos fusiveis (no primério dos tranformadores), temos que tal configuração não “enxerga” a falta à terra, cuja carcteristica é de alta impedadância (envolvendo o piso de asfalto), resultando em corrente muito menor que a necessária para a atuação de proteção contra sobrecorrente. Também não há sensores que identifiquem que a linha tenha sido rompida.

Fig. 2 – Queda de cabo energizado na via causou quatro mortes

Melhorias possíveis

Rede aérea isolada – Em virtude do crescimento industrial, da existência de clientes mais exigentes quanto à qualidade de entrega de energia, das multas por degradação ambiental (cortes e podas de árvores) e por transgressão dos índices DEC e FEC (indicadores de “qualidade” da Aneel), já há concessionária testando a rede de distribuição aérea isolada de MT, com cabos pré-reunidos [10].

Devido à isolação do cabo, acidentes com terceiros deverão reduzir-se significativamente,
pois nos casos de toques acidentais não deverá ocorrer choque. O cabo isolado de MT, mostrado na figura 4, confina o campo elétrico, permitindo que na sua camada externa o potencial seja zero.

Fig. 3 – Rede aérea de MT isolada

Uso de relés sensíveis à alta impedância – A tecnologia tem avançado bastante no desenvolvimento de relés sensíveis às faltas de alta impedância, e os três métodos mais empregados [11] são:

a) Monitoramento da corrente de terceira harmônica, comparando vetorialmente o último valor lido com a média;

b) Utilização de um algoritmo que identifica se o surgimento do arco elétrico foi motivado por um condutor caído ao solo; e

c) Análise de eventual desbalanço nas tensões, pois na ocorrência do rompimento de um condutor de fase, aparecerão tensões de sequências negativa e zero.

O IEEE tem um programa piloto de implantação desta proteção na Índia [12], um país com elevados índices de acidentes por eletricidade, e com realidade similar à encontrada aqui [13].

No Brasil, a concessionária Equatorial Energia já realizou um teste com esta proteção em uma instalação piloto, envolvendo 19 ramais [14].

Uso de relés sensíveis ao rompimento de cabos – O mais recente lançamento em proteção de linhas de alta tensão é um esquema especial de proteção contra queda de condutores que utiliza dados sincronizados transmitidos de todos os dispositivos instalados no sistema de distribuição, incluindo os relés de proteção, os religadores e os medidores. Algoritmos patenteados no Controlador
de Automação em Tempo Real (RTAC, na sigla em inglês) analisam continuamente os dados do sincrofasor em busca de anormalidades na tensão. Quando um condutor de energia rompido é detectado, o RTAC envia um comando de disparo aos dispositivos mais próximos da ruptura para isolar e desenergizar aquela seção do circuito. Tudo isso acontece em algusn centanas de milessegundos, enquato o condutor em queda ainda está no ar. [15]

As figuras 5 e 6 ilustram o conceito.

Fig. 5 – Rompimento de cabo, estimativa de atingir o solo em 1,37 s
Fig. 6 – O desligamento é realizado em 0,392 s, antes de o cabo atingir o solo

Características das redes de MT subterrâneas

Construção

As redes subterrâneas são empregadas em locais com maior concentração de carga, quando são exigidos transformadores de maior tamanho e a utilização de uma estrutura com postes passa a ser inviável, pois eles precisariam suportar não só os pesos dos transformadores como também as trações impostas pelos cabos de maior seção tranversal. Alem deste requisito técnico, as redes subterraneas conatm com a simpatia da sociedade pelo melhor aspecto visual nos logadouros e pelo menor número de interrupçoes no fornecimento de energia.

Fig. 4 – Cabo isolado de MT, em corte

Na rede subterrânea há diferentes configurações possíveis, tanto na rede primária (MT) quanto na rede secundária (BT). No projeto, são definidos os critérios de suportabilidade da rede às “contingências”, como são chamadas as faltas no sistema. Dependendo das características da localidade, a rede pode ser dimensionada para suportar uma (N-1) ou mais contingências, segundo as concessionárias, “sem comprometer a continuidade do fornecimento” [4].

No caso da rede subterrânea com secundário em anel (network), as consequências quando um determinado trecho sai de operação é que os demais passam a assumir uma parcela da carga
do trecho faltoso, com possibilidade de entrarem em sobrecarga, até o retorno à normalidade.

Outra característica do tipo networkadotado aqui é a ausência de proteção para os cabos secundários (BT), filosofia conhecida como “queima-livre” [16].

Ocorrências

As ocorrências de incêndios e explosões nas redes subterrâneas ficaram na berlinda no século XX, em especial nos EUA. No Brasil, temos tido ocorrências não só Rio de Janeiro e São Paulo mas também em outras cidades, desde 1930 [17].

Das vítimas dos acidentes no Rio de Janeiro, a americana Sarah Lowry, ficou internada por 67 dias com 80% do corpo queimado após ela e o marido terem sido atingidos pela explosão de um “bueiro” (no caso, uma caixa transformadora (CT), que abriga os transformadores e o protetor network) quando atravessavam, na faixa de pedestres, a rua República do Peru em 29/6/2010. Sarah foi arremessada a oito metros de distância e seu corpo caiu já em chamas na calçada [18].

Melhorias possíveis

As ocorrências de explosões de “bueiros” não são exclusividade brasileira. Quando se começou a construir redes subterrâneas no Brasil, nos EUA estas já eram conhecidas. E como foi adotada
aqui a mesma tecnologia de lá, os mesmos eventos ocorreram.

A configuração “queima-livre”, sem proteções aos componentes da instalação BT, é inaceitável perante as normas técnicas [19].

No mercado americano já foram desenvolvidas melhorias para as redes subterrâneas, como a monitoração das correntes e tensões, a instalação de indicadores de defeitos e o acompanhamento da temperatura dos cabos, tudo com comunicação remota com a central de controle e supervisão [20].

Dados, normas e legislação

Os dados

A Aneel tem divulgado os números relativos a acidentes nas redes elétricas [21], mostrados aqui na tabela I.

A manutenção dos patamares de acidentes e de mortes com terceiros (NACTER e NMOTER) ao longo dos
anos indica não só que a sociedade vem sendo continuamente vitimada, mas também que não se investe em medidas corretivas.

O histórico de mortes nos acidentes nas redes aéreas é mostrado na tabela II [2]. Destes números, podemos constatar, por exemplo, que as 297 mortes ocorridas em 2021 correspondem a 44% do total de mortes naquele ano decorrentes de acidentes com eletricidade, mostrando que as redes aéreas em cabos nus são extremamente perigosas.

Utilizando uma matriz de risco, ao correlacionarmos os fatores de “severidade” (morte –> alta) com “frequência” (por ocorrer todos os anos com mais de 200 mortes –> alta), resulta em risco “muito
alto”, inaceitável portanto (vide figura 7).

Uma apreciação superficial dos acidentes pode induzir que “árvores derrubadas em tempestades, que rompem os cabos e estes caem na rua, energizados, podendo atingir carros e pedestres” seja um exemplo de “imprevisto” [22]. Porém, se cabos partidos são recorrentes, o evento deve ser classificado como “previsto”. E se a rede aérea está sendo mantida há mais de um século sem proteção contra um evento previsto, sinaliza uma grave omissão, confirmada pelas centenas de mortes de cidadãos e animais.

Fig. 8 – Atuação dos protetores network na rede subterrânea

As normas

A ABNT possui normas sobre a construção de redes de distribuição aéreas, em que
são especificadas as ferragens e mostrados alguns detalhes de montagem [23]. Porém não há documentos técnicos que estabeleçam os dispositivos mínimos de proteção que as redes, aéreas
e subterrâneas, devam conter.

A norma que rege o projeto de instalações elétricas em MT [4] (assim como a de BT [19]) não se aplica “às instalações elétricas de concessionários dos serviços de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica”. Cria-se, assim, uma situação inusitada, em que as distribuidoras de energia elétrica exigem dos consumidores o atendimento às normas para que possam ser ligados, porém elas podem operar sem que suas instalações sigam as mesmas regras. Dessa forma, todo o capítulo 5 da NBR 14039, que aborda as proteções contra choques elétricos, efeitos térmicos, sobrecorrentes, sobretensões, inversão de fases, fuga de líquido isolante, perigos resultantes de faltas por arco, e por último, porém mais importante, proteção das pessoas que trabalham nas instalações elétricas de MT, pode ser solenemente ignorado pelas concessionárias. Pelo fato de as normas ABNT não serem aplicáveis às concessionárias, isto permite, por exemplo, que elas adotem a configuração “queima-livre” para os cabos de BT nas redes subterrâneas, bem como apenas isolar as faltas ocorridas nos cabos de MT utilizando o protetornetwork, como mostrado na figura 8.

Ressalte-se que a configuração da rede subterrânea não possui dispositivos que garantam que a operação em sobrecarga dos cabos de potência (caso das “contingências”) não supere 100 h durante 12 meses consecutivos ou 500 h durante toda a vida do cabo – requisitos de norma [24, 25]. E, em curto-circuito, a norma estabelece que, para cabos da classe 90 oC, a falta deve parar em 5 s e a temperatura no condutor não deve ultrapassar 250 oC [24, 25], o que também não é contemplado na configuração “queima-livre”.

Quando esses limites são ultrapassados, ocorre o envelhecimento térmico do isolamento do cabo, levando à sua deterioração e à emissão de gases inflamáveis responsáveis pelos eventos de fumaça, fogo e explosões na rede. A mídia tem atribuído, como “causas”, ou vazamentos de gás encanado, ou vapor d’água originado pela chuva. Como o gás apenas será da distribuidora de gás se for confirmada a presença de mercaptana, e a temperatura dos equipamentos fica abaixo de 100 ºC, tais “causas” são improváveis. Temos então que o gás inflamável liberado pela decomposição do isolamento do cabo é ignitado pelo próprio curto-circuito resultante, o que já causou centenas de vítimas, inclusive fatais [26].

A legislação

Sobre segurança – O artigo 132 do Decreto 41 019/1957, que regulamentava
os serviços de energia elétrica, já estabelecia: “A operação e a conservação deverão ser aparelhadas e organizadas de modo a assegurar a continuidade e a eficiência dos fornecimentos, além da segurança
das pessoas e a conservação dos bens e instalações nelas empregados”. Como esta menção a “pessoas” está no capítulo das instalações da concessionária, entende-se que se refira aos funcionários desta.

Sobre normas – Nos contratos de concessão celebrados com a Aneel [27], encontramos:
“A Concessionária obriga-se a adotar, na prestação dos serviços, tecnologia adequada e a empregar equipamentos, instalações e métodos operativos que garantam níveis de qualidade, continuidade
e confiabilidade estabelecidos pelo Poder Concedente para os serviços de energia elétrica.”

Portanto, o requisito contratual prioriza os níveis de produtividade, não sendo citada a segurança da população. E, para atingir os níveis de produtividade, a concessionária está liberada a adotar “tecnologia adequada”, mas não está contratualmente obrigada a seguir as normas brasileiras.

Sobre índices – Por não estarem referenciados contratualmente, os índices NMOFUPR, NMOTER e NMOFUT (vide tabela I) não interferem na remuneração das concessionárias, e nem se exige que elas tomem medidas para diminuí-los. Os índices utilizados pela Aneel para avaliar a qualidade do serviço
prestado pelas concessionárias baseiam-se na continuidade do fornecimento de energia [28]:
• FEC – frequência equivalente de interrupção
por consumidor;
• DEC – duração equivalente de interrupção
por consumidor;
• DIC – duração de interrupção individual
por consumidor; e
• FIC – frequência de interrupção individual
por consumidor.

Conclusões

Como os acidentes envolvendo pessoas e bens não impactam negativamente na avaliação/remuneração das concessionárias, eles não recebem atenção prioritária, sendo tratados como “eventos imprevistos”, que não podem ser controlados ou evitados. A não aplicação de anções às concessionárias pelos registros de acidentes denota a ausência da implantação de medidas eficazes para redução dos casos de choques e mortes, que assim mantêm-se recorrentes.

Deve haver a mobilização da sociedade civil no sentido de que os registros
de acidentes não sirvam apenas para preencher papel com tabelas e estatísticas; seu objetivo principal é orientar a tomada de decisões para solucionar os problemas. É inaceitável que situações em que o nível de risco é “muito alto” não recebam medidas corretivas com prioridade.

A modernização das redes, acompanhada de revisões nos critérios contratuais para avaliação de desempenho das concessionárias, e com a implantação de um esquema de proteção no qual a segurança para pessoas e animais seja priorizada, é imprescindível para estancar a perda de vidas, que é o custo oculto das redes de distribuição baratas, concebidas há mais de 100 anos e que se mantêm favorecidas pelo atavismo e pela impunidade.

Estellito Rangel Junior Engenheiro eletricista em sistemas de potência e segurança em eletricidade